terça-feira, 28 de dezembro de 2010

CENA ENTRE ADÃO E EVA

A Criação de Adão - Michelângelo

Entra Adão, meio como um macaco, com os joelhos arqueados, completamente nu, segurando uma pedra.

ADÃO (contente) Vê, Eva! (oferece a pedra a Eva) Andava eu pelas encostas dos sonhos, e achei esta coisa... afiada... Servirá de algo...? 

Adão pára ao ver Eva com ar de preocupação.

Eva está sentanda num tronco, coberta com folhas de parreira, que passara a manhã toda cortando com a uma pedra muito parecida com a que Adão lhe está mostrando. Sua mãos estão sangrando devido aos cortes da "ferramenta". Há folhas de parreira por todo o chão.

EVA (levanta-se, repreensiva) Que me mostras a esse tempo duro! (aproxima-se de Adão e exibe as mãos cortadas) Estarás cego? (encara Adão) Estou preocupada, não sabes?

Adão enfim observa o cenário a sua volta, abaixa-se, pega duma folha de parreira, levanta-se, cobre-se, e apos devolver o olhar  furtivo a Eva, joga a pedra.

ADÃO Tua dor é tua, mulher! (e sai andando normalmente)

Adão enfim é um homem.

A DIVINA COMÉDIA - Dante Alighieri - O PRIMEIRO CANTO DO INFERNO

(Tradução de José Pedro Xavier Pinheiro, 1822-1882)

Dante, perdido numa selva escura, erra nela toda a noite. Saindo ao amanhecer, começa a subir por uma colina, quando lhe atravessam a passagem uma pantera, um leão e uma loba, que o repelem para a selva. Aparece-lhe então a imagem de Virgílio, que o reanima e se oferece a tirá-lo de lá, fazendo-o passar pelo Inferno e pelo Purgatório. Beatriz, depois, o guiará ao Paraíso. Dante o segue.

Gustave Doré (Estrasburgo, 6 de janeiro de 1832 — Paris, 23 de janeiro de 1883) - Dante Alighieri - Inferno
Da nossa vida, em meio da jornada,
Achei-me numa selva tenebrosa,
Tendo perdido a verdadeira estrada.

Dizer qual era é cousa tão penosa,
Desta brava espessura a asperidade,
Que a memória a relembra inda cuidosa.

Na morte há pouco mais de acerbidade;
Mas para o bem narrar lá deparado
De outras cousas que vi, direi verdade.

Contar não posso como tinha entrado;
Tanto o sono os sentidos me tomara,
Quando hei o bom caminho abandonado.

Depois que a uma colina me cercara,
Onde ia o vale escuro terminando,
Que pavor tão profundo me causara.

Ao alto olhei, e já, de luz banhando,
Vi-lhe estar às espaldas o planeta,
Que, certo, em toda parte vai guiando.

Então o assombro um tanto se aquieta,
Que do peito no lago perdurava,
Naquela noite atribulada, inquieta.

E como quem o anélito esgotava
Sobre as ondas, já salvo, inda medroso
Olha o mar perigoso em que lutava,

O meu ânimo assim, que treme ansioso,
Volveu-se a remirar vencido o espaço
Que homem vivo jamais passou ditoso.

Tendo já repousado o corpo lasso,
Segui pela deserta falda avante;
Mais baixo sendo o pé firme no passo.

Eis da subida quase ao mesmo instante
Assoma ágil e rápida pantera
Tendo a pele por malhas cambiante.

Não se afastava de ante mim a fera;
E em modo tal meu caminhar tolhia,
Que atrás por vezes eu tornar quisera.

No céu a aurora já resplandecia,
Subia o sol, dos astros rodeado,
Seus sócios, quando o Amor divino um dia

A tais primores movimento há dado.
Me infundiam desta arte alma esperança
Da fera o dorso alegre e mosqueado,

A hora amena e a quadra doce e mansa.
De um leão de repente surge o aspecto,
Que ao meu peito o pavor de novo lança.

Que me investisse então cuido inquieto;
Com fome e raiva atroz fronte levanta;
Tremer parece o ar ao seu conspeto.

Eis surge loba, que de magra espanta;
De ambições todas parecia cheia;
Foi causa a muitos de miséria tanta!

Com tanta intensa torvação me enleia
Pelo terror, que o cenho seu movia,
Que a mente à altura não subir receia.

Como quem lucro anela noite e dia,
Se acaso o tempo de perder lhe chega,
Rebenta em pranto e triste se excrucia,

A fera assim me fez, que não sossega;
Pouco a pouco me investe até lançar-me
Lá onde o sol se cala e a luz me nega.

Quando ao vale eu já ia baquear-me
Alguém fraco de voz diviso perto,
Que após largo silêncio quer falar-me.

Tanto que o vejo nesse grão deserto,
— “Tem compaixão de mim” — bradei transido —
“Quem quer que sejas, sombra ou homem certo!”

“Homem não sou” tornou-me — “mas hei sido,
Pais lombardos eu tive; sempre amada
Mântua lhes foi; haviam lá nascido.

“Nasci de Júlio em era retardada,
Vivi em Roma sob o bom Augusto,
Quando em deuses havia a crença errada.

“Poeta, decantei feitos do justo
Filho de Anquíses, que de Tróia veio,
Depois que Ílion soberbo foi combusto.

“Mas por que tornas da tristeza ao meio?
Por que não vais ao deleitoso monte,
Que o prazer todo encerra no seu seio?”

“— Oh! Virgílio, tu és aquela fonte
Donde em rio caudal brota a eloqüência?”
Falei, curvando vergonhoso a fronte. —

“Ó dos poetas lustre, honra, eminência!
Valham-me o longo estudo, o amor profundo
Com que em teu livro procurei ciência!

“És meu mestre, o modelo sem segundo;
Unicamente és tu que hás-me ensinado;
O belo estilo que honra-me no mundo.

“A fera vês que o passo me há vedado;
Sábio famoso, acude ao perseguido!
Tremo no pulso e veias, transtornado!”

Respondeu, do meu pranto condoído;
“Te convém outra rota de ora avante
Para o lugar selvagem ser vencido.

“A fera, que te faz bradar tremante,
Aqui passar não deixa impunemente;
Tanto se opõe, que mata o caminhante.

“Tem tão má natureza, é tão furente,
Que os apetites seus jamais sacia,
E fome, impando, mais que de antes sente.

“Com muitos animais se consorcia,
Há-de a outros se unir té ser chegado
Lebréu, que a leve à hórrida agonia.

“Por ouro ou por poder nunca tentado
Saber, virtude, amor terá por norte,
Sendo entre Feltro e Feltro potentado.

“Será da humilde Itália amparo forte,
Por quem Camila a virgem dera a vida,
Turno Eurialo, Niso acharam morte.

“Por ele, em toda parte, repelida
Irá lançar-se no infernal assento,
Donde foi pela Inveja conduzida.

“Agora, por teu prol, eu tenho o intento
De levar-te comigo; ir-te-ei guiando
Pela estância do eterno sofrimento,

“Onde, estridentes gritos escutando,
Verás almas antigas em tortura
Segunda morte a brados suplicando.

“Outros ledos verás, que, em prova dura
Das chamas, inda esperam ter o gozo
De Deus no prêmio da imortal ventura.

“Se lá subir quiseres, um ditoso
Espírito, melhor te será guia,
Quando eu deixar-te, ao reino glorioso.

“Do céu o Imperador, a rebeldia
Minha à lei castigando, não consente
Que eu da cidade sua haja a alegria.

“Em toda parte impera onipotente,
Mas tem no Empíreo sua augusta sede:
Feliz, por ele, o eleito à glória ingente!”

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

PRIMEIRA LIÇÃO DE AMOR

Preciso fazer que ela me ame.
Que me deseje. Que me apaixone por ela.
Preciso fazer que ela me ame,
que não divulgue meu nome em vão, que não desapareça sem sorrisos,
que não se sinta inferior a mim,
que não desapareça sem lágrimas.

Preciso fazer que ela me ame.
Que não me trate como o vagabundo ao emprego,
ou como as quimeras de Adão e Eva, ou como
a inconstância dos ventos, ou como
o fogo que arde nos versos de Camões,
ou como o costume de orar, os oradores.

Preciso, preciso que ao me amar, ela se sinta ímpar, feliz,
quase uma serpente no deserto,
quase feita de carnes e ossos,
quase abraçada ao amado numa cama estreita,
quase de cabelos brancos,
com os filhos gêmeos no colo,
Enfim... quase morta...

Quase morta a Sua face, quase mortos os Seus segredos,
quase extintos os Seus nãos, quase simples os Seus sins.

Na verdade, o que preciso dela é que não se vá com o vento,
não se iluda ao me deixar a esperando por essas décadas frias,
por essas noites temerosas, por essas ruas sem calçadas,
por esses territórios sem cercas,
esses moinhos de vento.

Na verdade, se ela não sabe que me ama,
como saberá que me ama, se ela não sabe ler?
Se ela não sabe que me ama,
que vai me amar,
que vai me deixar por décadas
se ela não sabe ler meus versos nas noticias bonitas do jornal,
se ela se parece com a mãe dos seus filhos, se
ela é somente a mesma vagabunda de "vida fácil"
por que a minha solidão é plácida?
por que meus atos são demorados?
por que minha casa é barulhenta?
por que sou inclinado a odiar os que se julgam de mim os maiorais?
por que não obedeço aos pais quando quero desobedecer aos pais?
Por que eu a quero sem motivos?
A esperarei plantando sementes de tulipas?
Se amo mesmo os cactos?
Por que nunca levei minha irmãzinha num caixão fechado, minha filhinha morta?

Preciso fazer que ela saiba que me ama,
de algum modo que possa me ler à noite, antes de dormir,
antes de beijar a face da mãe, antes de beijar as mãos do pai,
preciso fazer que ela saiba que me ama,
que vai me amar, que vai me deixar, que vai simplesmente se apaixonar por outro,
e ainda assim me amar.
Preciso fazer que ela saiba que me ama,
que ela aprenda a ler as boas noticias no jornal,
que ela descubra sua árvore genealógica,
que more na Grécia, no Japão, nesta mesma rua onde moro,
nesta mesma cidade onde escrevo,
e não se mude para o quarto contíguo.
Preciso fazer que ela saiba
que após dez anos
descubra que me amou,
que me deixou por décadas geladas, nubladas,
a caminhar sem destino
por paragens gregas, pensando em dias vindouros.
Preciso ser rápido, certeiro,
e matá-la enquanto tentar arrancar das minhas mãos uma tulipa.

Preciso convencê-la a não deixar que eu morra,
a não deixar que eu pereça,
a não me odiar por (eu) ser apenas um garoto qualquer,
sem lar, sem dono, sem constrangimentos.

Que importa que ela de mim tenha pena,
e de mim nem diga um terço
do que as almas apaixonadas não dizem?
Sim, preciso matar-me quando ela me der um cacto.
Preciso esperar dez anos ou menos
e ter de cobertor apenas uma notícia de jornal.
Preciso controlar do fundo da alma
a vontade homérica de ensiná-la a ler.